Em abril de 2011, a DC Comics publicou uma das decisões mais ousadas de toda a trajetória do Superman. Na histórica edição Action Comics #900, uma HQ comemorativa de 96 páginas, o personagem símbolo dos ideais americanos há mais de sete décadas declarou, em plena Organização das Nações Unidas, que estava renunciando à sua cidadania norte-americana. O motivo? Suas ações estavam sendo constantemente vistas como interferência política em nome dos Estados Unidos, o que o impedia de agir como um defensor global da humanidade.
“Estou cansado de ter minhas ações interpretadas como instrumentos da política americana. [...] A verdade, a justiça e o modo de vida americano já não são o bastante.”
Esse trecho, da história curta intitulada “The Incident”, escrita por David S. Goyer e desenhada por Miguel Sepúlveda, gerou uma repercussão global imediata. Nos Estados Unidos, portais conservadores e comentaristas políticos denunciaram o ato como uma tentativa da DC Comics de “desamericanizar” um ícone patriótico. A Fox News chegou a noticiar que a editora havia “distorcido os valores originais do personagem”. Por outro lado, análises progressistas, fãs internacionais e críticos culturais celebraram o gesto como um passo corajoso rumo a um reposicionamento ético e globalizante do herói — algo necessário num mundo cada vez mais interdependente.
O contexto geopolítico da época: 2011 e a primavera árabe
O ano de 2011 não foi escolhido por acaso. Naquele momento, o mundo acompanhava de perto a Primavera Árabe, com manifestações por democracia ocorrendo em diversos países do Oriente Médio, incluindo o Irã, foco narrativo da história. A decisão de posicionar Superman — silencioso e pacífico — em meio a um protesto em Teerã reforça a ideia de que os quadrinhos são sim uma forma de comentário político, mesmo quando não declaram isso abertamente. Sua simples presença foi suficiente para ser interpretada como ameaça. E isso, por si só, já diz muito sobre como símbolos são manipulados por discursos de poder.
Superman como símbolo e a transição para uma ética pós-nacional
Desde sua criação em 1938, Superman sempre esteve entrelaçado à identidade nacional dos EUA. Ele já combateu nazistas, comunistas, alienígenas invasores e supervilões — sempre guiado pelo lema: "verdade, justiça e o modo de vida americano." Mas em uma sociedade cada vez mais globalizada, conectada e sensível a colonialismos culturais, essa definição se torna insuficiente — e até problemática.
A renúncia à cidadania, portanto, não é uma rejeição dos valores democráticos, mas uma afirmação de universalidade ética. Superman passa a se compreender como um herói da humanidade, e não de um governo. Ele transcende a geopolítica e assume uma posição simbólica de defensor da empatia, da paz e dos direitos humanos em escala planetária.
Essa decisão narrativa revela um amadurecimento editorial e simbólico da DC Comics. Ao invés de simplesmente atualizar trajes ou vilões, os roteiristas escolheram discutir quem é o Superman no século XXI. E fizeram isso num momento crítico, em que o mundo assistia a protestos contra regimes autoritários e ao crescimento das redes sociais como força política.
Quadrinhos como espelhos do mundo
Os quadrinhos de super-heróis sempre foram reflexos das ansiedades e esperanças de seu tempo. O Capitão América nasceu como crítica ao nazismo. O Batman pós-11 de Setembro tornou-se mais sombrio e paranoico. E agora, o Superman se torna um símbolo de responsabilidade coletiva, de resistência pacífica e de compromisso com a dignidade humana em qualquer canto do planeta.
Mais do que uma decisão polêmica, a fala do Superman em The Incident é uma convocação para refletirmos sobre o papel dos mitos modernos. Heróis não precisam representar países. Eles podem — e talvez devam — representar princípios.
Como fã, professor e pesquisador, vejo nesse gesto um divisor de águas. Ele não apaga a história do Superman com os EUA, mas amplia seu legado para o mundo. E se hoje ainda discutimos essa cena, 13 anos depois, é porque ela acertou em cheio no ponto mais sensível da cultura pop: a disputa por símbolos e significados em um mundo em transformação.
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